esmiúça

não há nada que agora esteja mais mar
que o pulmão lençol sem lado de dentro
pendurado secando do que não estanca
de molhar e ventar e bater contra pedras

isso de não e sim
não é mais do que ir
sem se sentir partir


mergulha-te
de dentes abertos

A criança

amigo
você que toma conta deles como se fossem bebês
não me diga que não os viu
lhe deixando para trás como que crescidos

eles te precisam
para deixar algo para trás?
você os precisa
para ser mãe?

de mim
não
a mais uma criança eu digo
de mim
não

Embolia

A rua cheira a chuva, vinho, cigarro e cachorro. Mas o cheiro da chuva ainda sobressai.O pau brasil florido tem todas suas flores agora caídas no chão. Caminha até a parada de ônibus e volta carregando parte das bolsas com as compras que a mãe tinha feito. Duas amigas desta ajudam também, animadas e falando alto. Caminham até a casa, pisam nas poças de lama e sentem o cheiro da chuva. Um pouco depois, já no quarto, observa o irmão mexer em papéis de anos atrás. Contemplando em pensamento o que deveria estar fazendo em vez disso, deita-se. Ele de costas pra ela, iluminado pela luz amarela. No chão, os pedais e um rádio aberto com um CD rosa dentro. A mãe entra no quarto, mostra um belo par de brincos, diz que os comprou hoje e outras coisas mais. O coração acelera e não sabe se se importa em saber porque. O tempo a partir de quando saiu por aquela porta até agora parece importar, parece uma pista. Vêm uma ânsia de choro. E não está triste. Falta ar e cresce uma massa no peito, o que é isso?

Pare

as vezes acontece de se encontrar em um lugar olhando em uma certa direção e algo passar
algo que a princípio parece um sentimento mas pode não ser
pensar nas palavras a se usar,que são quase sua única língua, parece um erro

Cala-te e percebe
não há divisão possível dessa coisa então não tente
há esse instante então perceba
e cala-te

novembro-dezembro de 2011

Pálido Amor

não queria deixar-se soltar
queria soltar e ir na coisa

e são, porque se são não o fosse, ação não seria

se soltasse seria sua primeira e última
só seria uma sendo a outra
só existiria sendo as duas

a ação de não agir
o soltar sem soltar-se

o soar que é são enquanto são se prova
por provar-se


*postado anteriormente no hipertemáticas

A cada 2 anos

Há dias que te dão as perguntas que você não quer fazer.
E esses dias não tem fórmula de existir
lá esta você achando que esta com sono mas esta mesmo é caindo fora de si
caindo dentro desses dias que te roubam de você

eu os chamaria de traiçoeiros
mas e se essa saudade que sinto deles perdoá-los por mim?

esses dias transformam a sala em estação de trem
cada um é menos uma cadeira
e só os que correm parecem merecedores do destino que querem

Maio 2011

Queria que em uma explosão tudo virasse o barulho quieto de páginas virando, de brisa suave e de móveis bloqueando o sol
que o nada acontecesse
queria que um lençol dobrado e um lençol amassado fossem o mesmo
que nada acontecesse
que as linhas dos cadernos sumissem, que as palavras se alinhassem
que o quero isso já não precisasse mais querer o isso
e nada acontecesse
e ele não precisasse estender a mão sem tocar
que tudo fosse um presente imenso sem passado ou futuro
e então nada acontecesse
para eu não ir o abraçar como não a abracei

Talvez eu deva deixar a cidade por um tempo
Talvez eu deva deixar esse corpo

Eu escuto carros correndo nas ruas
Quero ser o barulho que eles fazem
Me esvaindo até virar silêncio

Eu não conseguirei dividir a cama comigo mesma essa noite, penso

e deito

Acordo cada dia mais desbotada

a tinta de que sou feita, pingando, me olha e diz:

de nada

12.12.2010

Nem título

Sonhava com o lugar perfeito para se dormir. Perfeito sim, porque a perfeição carrega em si a combinação perfeita entre qualidades e defeitos. Era esse lugar que ela queria. Durante muito tempo essa cama não teve nem forma nem cheiro nem lugar de ser. Os lençois não tinham nem cores nem toque nem lençois.De vez em quando havia uma mão sob a cabeça, uma mão sob a mão dela, uma mão além das duas que já tinha. Mas essas imagens não duravam mais do que uma noite. Iam-se, eram imagem e nada. Não lembra-se de sonhar com nada além de um lugar que não era aquele em que estava mas que também não era nenhum outro, ainda.

Então quando foi que essa cama sonhada ganhou bordas onde encostam os cotovelos?
Quando foi que a cama virou essa?
Quando foi que esse sonho de cama ganhou essa forma dura, esse toque amadeirado e esse cheiro de terra remexida?

não e depois sim

tudo ao redor me influencia negativamente
porque vai contra aquilo em que acredito
acredito em observar e deixar-se ser impressionado
mas na margem, na margem
sou indiferente

Ela sabe assobiar

A noite, diante do espelho, ela tocava as têmporas pensando em como era fácil para algumas mulheres apenas conversarem sobre maquiagem.Ela praticamente não usava mas era por achar que quando não havia genuína beleza a ser realçada a tinta tornava-se traiçoeira e apenas servia para mostrar que o esforço não compensava.
Nem seriedade nem graça a serviam, nem o sorriso aberto, nem o contido nem o sorriso nenhum a auxiliavam.Tinha que tomar cuidado, podia facilmente parecer vulgar ou obscuramente feia, no final parecer simplesmente feia era a melhor opção.Ela amava poesia mas ninguém poderia imaginar que uma coisa tão soturna tivesse relação alguma com a claridade da beleza poética.
Não haveria música na vida dela se dependesse dos outros, mas que bom que não dependia.Ela então podia balançar a cabeça ao som de um samba nem tão qualquer que não falasse da beleza da mulher.



Julho/2010

Bronzeando a palma da mão

Estou te vendo muito e isso esta te fazendo não ver muito em mim.
Todo pássaro que eu aponto agora é só um pássaro, antes era um momento voador na eminência de ter o céu de volta.
E eu estou dançando ao som do meu mais novo achado musical e tu do outro lado vais abaixar a vista e tentar pegar as notas de ouvido. Simples assim e já tão diferente do que foi.
Eu vou me vingar, vou baixar as defesas e te olhar de cara limpa bem no momento que você não estiver prestando atenção. E sem perceber terás perdido a resposta a pergunta que te trouxe aqui.
Um andarilho que deixou de observar a paisagem e ainda perdeu a esquina que dava para a cidade seguinte é o que?
Uma procissão de uma pessoa só?


Segure então o estandarte da fé que não tens.

a única coisa que sei desenhar :]

Ambidestro

Esquerda

Se encontraram ainda na calçada, a idéia o ocorreu, ela falou primeiro:

-Vamos caminhar na praia?

Foram, descalços na areia, como deveria ser.A praia não cheirava bem e era barulhenta, mas ainda era praia, como deveria ser.

-Está ficando tarde, tenho que ir.

Sim, estava ficando tarde para ela, não estava ficando tarde para ele, não deveria ser assim.

-Eu vou caminhar mais um pouco.

Ele tinha ido alí para caminhar, talvez desde o começo ele devesse ter caminhado e só.
A direção que o vento soprava trazia o cheiro dela que encobria o mal cheiro da praia e a voz dela que encobria o barulho, mas ele ainda tinha ido alí pela praia e não por ela.
Decidiu então que era hora de sentar um pouco e observar as outras pessoas caminhando.
Antes de mais nada quis ter certeza, olhou para trás, viu seus passos na areia seca, não viu os passos dela.

Direita

Encontrou ele alí, tinha pressa, o convidou a caminhar na praia.
Cuidadosamente andou com os pés dentro d'agua, assim ela se sentia limpa.
Como ele estava do outro lado, ficava de costas para o sol, queria manter os olhos nele mas a cidade logo atrás chamava demais a atenção.
Girou o pescoço, tinha perdido o pôr do sol, nem se importava muito, mas... não era isso que ela tinha vindo fazer?
Não sabia mais o que fazia alí, tinha que voltar para onde estava para descobrir.
Se despediu e foi embora, os pés molhados catando todo grão de areia pelo caminho.
Uma vez de volta ao chão de concreto , foi deixando paços abstratos.
Qualquer um sabia por onde ela tinha andado.

Último dia em cartaz

Canso
de ir ao lugares esperando de mim o que nunca dou
Descanso
e acho que saber ser a causa é também poder mudar
Penso
que tudo que eu acho que sei só vem acrescentar
Dispenso
o 'a mais' ,o 'de quebra', o segundo coelho

porque o primeiro já entrou no buraco, pontualmente
e eu nem cai nem me levantei,mas,eventualmente

Ando
no mesmo sentido
Desando
em direções diferentes

Hoje e nunca mais

Era tarde, me sentei junto ao meu cachorro no lugar preferido dele e repeti o que ele fazia: olhar a rua.A luz do poste piscava despercebida, pessoas passavam olhando para baixo e de quando em quando um vento forte nos encontrava.Nem era vento, era o ar que os carros e ónibus deslocavam ao passar correndo.O pedaço do céu que eu podia ver ia escurecendo,sem nuvens ou estrelas.A água escorreu dos olhos até a boca e fiquei bebendo em silêncio.O cachorro tocava o nariz gelado em mim quando eu parava de acariciá-lo e eu não tocava meu nariz em nada.Ainda assim, de vez em quando, o vento fazia as roupas do varal acima da minha cabeça roçarem de leve em mim.Ou talvez fosse só impressão.Uma amiga um dia me disse que a gente também chora por não saber o que está sentindo.Tudo parece tão óbvio mas fora as pessoas falando eu nunca saberia.É sempre silêncio aqui e o eco empurra de volta o grito na cara de quem gritou.

Mesmo tendo sempre dito o quanto gosta dela...

...hoje você não sente a chuva te cobrindo
não sente a chuva te protegendo, cúmplice
você não sente a chuva te acompanhando, protegendo, apoiando
não sente a chuva invadindo tudo e fazendo de tudo novo ao seu redor

você não sente a tristeza quando ela se vai
e descobre que só o que sobrou foi você molhada
e todos te olhando como se estivesse suja

17 de junho de 2007

larga

amarelo, amarelo, amarelo, amarelo

você me faz rir, amarelo

você, você, você, você

você me faz rir amarelo

De gato

alguém me dê um coração de gato
não quero mais ser meio ao meio
porque minha cabeça só pensa em meus bigodes, no peixe, no leite e nos telhados
mas meu coração bate humanamente
e mentindo confunde a mente dizendo ser assim que eu penso
mas com um coração também de gato
não haveria sapato velho que me despertasse a emoção
e poderia ser o contrário sim
mas se eu pensei primeiro nessa opção
porque não?

5 de agosto de 2010